segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O mito da caverna

Aí o cara que saiu da caverna voltou lá e avisou os outros, 'aí, rapaziada, aqui fora o mundo é outro, chegaí pra ver". Pensava que haveria entusiasmo, alegria, mas houve estranheza e medo, seguidos de negação e revolta, “que nada, calaboca!”, “sai fora, babaca!”, “não enche o saco!”, “não vem perturbar aqui não”!, “tu não sabe de nada!”, “vai pra Cuba!”. A rejeição foi grande, agressiva, raivosa. Diziam que ele trazia a discórdia, a mentira, davam sinais de violência, reafirmavam suas ilusões como verdades. O cara viu que não dava em nada além de problemas e saiu fora pro mundão, 'então ficaí, cambada de mané, tô vazando', e antes que os otários se dessem conta, o cara já tava lá fora onde eles morriam de medo de ir. Ficou o silêncio, nesse momento a semente foi lançada . Uma vibração no escuro da caverna, as imagens mostrando a “realidade” projetada na parede e um enorme incômodo no ar. De um canto escuro, alguém falou baixo como quem pensa alto, “a gente devia ter matado ele”.

Lá fora o cara andou, olhando a realidade que desconhecia, conheceu cores, sons, cheiros, paisagens, em profundas admirações, sem entender porque havia quem projetava aquelas imagens ilusórias na parede da caverna, mas mergulhado nas novidades que descobria. E descobriu que haviam outras pessoas como ele, outras cavernas como a dele e muitas, muitas pessoas presas às mesmas ilusões impostas por enganadores. Conheceu essa gente saída de outras cavernas que se atraíam, amistosas, livres das induções à rivalidade e à competição. Conquistaram o acesso ao mundo fora das cavernas e agora dividiam a intenção de acordar os outros, mostrar os limites impostos, causar o rompimento desses limites. Mas encontravam a hostilidade dos condicionados e, sem desistir definitivamente, viviam suas vidas, sempre alertas às oportunidades de provocar reflexão, questionar as mentiras cotidianas, mostrar que as imagens nas paredes são projetadas e que a realidade é muito outra, muito melhor e mais rica. E o cara dividiu experiências, conheceu outras maneiras, conversou, aprendeu, plantou, colheu, cooperou, ganhou vivência,  conhecimento, sabedoria.

Nas conversas coletivas, que eram muitas e sobre muitos assuntos - desde as estrelas, os modos de plantio, remédios naturais, até as relações entre as pessoas e a forma de organização da coletividade, sempre mutante - um assunto freqüente era a alienação geral, os prisioneiros das cavernas, acorrentados em ilusões fabricadas. Idéias eram apresentadas, discutidas e postas em prática. Diante da hostilidade comum e dos perigos do contato direto, entrando nas cavernas, um dia alguém sugeriu chegar do lado de fora, bem na porta, e fazer um barulho, demonstrar a liberdade sendo exercida, em vez de tentar conversar, convencer, argumentar, apelar à razão, à inteligência racional. Esta já estava tomada pela prática rotineira, pelo medo induzido e todos os recursos de mídia pra paralizar o pensamento e conduzir às ilusões. Era preciso atingir a alma, conversar com a intuição, o sentimento, o sentir é mais que o saber, mais profundo, mais forte que a razão. E a idéia brotou: “bora fazer uma charanga?” 

Na porta das cavernas eles botam a boca no trombone. Cantores, palhaços, malabaristas, desenhistas, músicos, pintores, dançarinos, atores foram surgindo de todos os lados. Os que faziam as sombras, projetando da forma que convinha à hipnose, ao entorpecimento, à formação da opinião pública não gostaram nada disso. E começaram a atacar os denunciadores, os reveladores das mentiras cotidianas, de todas as maneiras, difamando, atacando, perseguindo,  sabotando. Mas quase sempre saía alguém da caverna, ofuscado, maravilhado, e era acolhido no grupo, com cuidado, carinho e alegria. Às vezes, mais de um. De vez em quando, grupos vinham pra fora e era uma festa.

A história não acabou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário